sábado, 7 de fevereiro de 2015

Parte 4 - São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Modenra - (créditos - Adalgiza Arantes Campos - Universidade Federal de Minas Gerais)

4. Os altares de São Miguel e Almas
No decorrer do dezoito e princípios do dezenove mineiros, os altares de São Miguel, bem como das irmandades em geral, subordinavam-se aos modelos internacionais, ainda que em ritmos diferenciados. Temos assim os retábulos do tipo Nacional-Português (1700-1730), D. João V ou Joanino (1730-1760) e o "Rococó" (1760-1840) sendo que a transição constituiu um processo lento, resultando soluções mescladas e tardias (26).
Durante todo o período citado, houve elaboração de altares de São Miguel e Almas, mas eles foram mais freqüentes nas primeiras décadas do setecentos. Contudo, reconhecemos a existência de um conjunto expressivo de altares do Joanino tardio (1745-1760) e do Rococó, geralmente decorrentes da substituição da talha primitiva. Assim sendo, verificamos que a devoção não declina abruptamente, ao contrário, resiste bem, atingindo com tranqüilidade o próprio oitocentos. Todavia, em discreta retirada para favorecer invocações em propagação: Paixão de Cristo e temas correlatos, Nossa Senhora da Boa Morte, São Francisco de Assis, Sagrados Corações...
As irmandades de maior poder aquisitivo, conseguiam acompanhar as novidades artísticas, alteravam, via de regra, os retábulos originais ou pelo menos as mesas de altares que, modernizadas, diferenciam-se do conjunto escultórico respectivo. As modificações aconteciam ao sabor do momento, sem obedecer a um programa teológico ou iconográfico. É comum encontrar a mesa Rococó (ou mesmo sem estilo definido) em retábulo do nacional-português ou joanino.
Face às inovações estilísticas, mesas de altares perderam seus emblemas distintivos - balança e/ou alminhas, conseqüência da depuração do fundo escatológico da iconografia original. O acervo ficou alterado em seu contexto cultural, o qual suprimiu a maioria das balanças com almas, atributos recorrentes nos primórdios da colonização, quando eram fortes as marcas de origem.
Observamos a difusão de balanças sem almas em frontais de mesa de altares, em meio às modificações introduzidas, a partir de 1745, na talha joanina (27). Desde então, e no Rococó em particular, tornam-se flagrantes como atributos as balanças vazias, a cruz ou a ausência total de símbolos religiosos. As obras com a representação de balança vazia superam numericamente aquelas dotadas de alminhas, porque são mais recentes, pois correspondem ao redirecionamento da mentalidade religiosa no sentido de uma racionalização. As criaturas do além vão se retirando do mundo da representação, para serem veneradas sob uma forma mais interiorizada e até arrefecida, doravante sem a mediação da imagem. Verificamos o domínio recuado de uma iconografia mais solidária com a sorte das benditas do purgatório, mais direta e espontânea, tal como encontramos em Monsenhor Horta (antigo São Caetano), Cachoeira do Campo, Furquim, Itaverava, Vila Rica (Conceição do Antônio Dias) e São João del Rei (28). (Fig:V e VI).
Em meados do XVIII mineiro, as transformações no âmbito da talha joanina restringem seus elementos simbólicos em proveito do conjunto estético - enxuto, estrutural, grandioso. Essa tendência em despojar a decoração do seu significado religioso e desbastar os caprichos ornamentais, atinge o gosto das irmandades, e notadamente os altares de almas feitos nesse período. Com essa concepção, dois altares sobressaem pela monumentalidade, requinte e despojamento ornamental, em relação aos modelos pretéritos - o da matriz de Catas Altas (Fig: IX) e o da Sé de Mariana, ambos lado Epístola, ladeando o arco cruzeiro. Eles obedecem a um pensamento prévio, não foram feitos para depois assimilarem invocacões em nichos ou se modificarem paulatinamente, como é o caso do altar de Miguel da matriz do Pilar ouropretana, que atingiu esta iconografia a partir de intervenções em datas diferentes.
As duas irmandades das Almas, a de Catas Altas (29) e a de Mariana (30) já se encontravam constituídas em 1713 (31). Há descompasso entre a iconografia do Arcanjo de Catas Altas, de concepção tradicional e de fatura elaborada - demônio animalesco, balança com almas, estandarte com inscrição (Quis ut Deus) - e o altar no qual se insere, bem mais simplificado, embora refinado (Coelho & Hill, 2001). Os atributos da imagem são literalmente escatológicos. Enquanto este conteúdo é abrandado, ou mais espiritualizado, na ornamentação do retábulo, encimado pelo grande arranjo escultórico, no qual se tem a alegoria da Fé (uma jovem de olhos venda­dos trazendo uma cruz à direita), na tribuna destaca-se o Senhor Bom Jesus de Matosinhos, circundado por uma massa escultórica de raios luminosos; logo abaixo no nicho uma imagem de Nossa Senhora das Dores, no espaço convencionalmente destinado ao sacrário (32).
Trata-se de altar de fatura erudita, na forma e no conteúdo simbolizado, distante daquelas mensagens diretas fornecidas pelas almas que, para suscitar a devoção, mostravam as penas que padeciam. A fé é a virtude mais nobre, indispensável à graça e à salvação eterna (Jó 8, 24). É cega, porque aquele que crê "não esquecerá que os olhos hão de estar sempre vendados para o ma, fechados ao mundo que despreza a lei de Deus" (33). Na cultura barroca, a cruz materializa sempre a expulsão das trevas, proteção divina, aversão à idolatria e, sobretudo, a meditação sobre a morte, entendida como portal para a eternidade dos justos. O Senhor do Bom Jesus e sua mãe evocam a memória o drama do Calvário, tão relevado no catolicismo barroco. O destaque reservado ao Cristo, em prejuízo do próprio padroeiro, representa o acatamento à pastoral tridentina, pois sua imagem deve preceder a todas outras (34). O catolicismo pós tridentino venera tanto a Paixão, que santos oragos descem dos tronos, com modéstia, em direção ao sacrário do próprio altar. De um modo geral, dia a dia vão desaparecendo aqueles sinais evocativos de orações para as Almas do Purgatório, embora a mentalidade continue voltada para a salvação eterna.
No altar da Sé de Mariana, certamente concluído em 1748, estão presentes o Senhor Bom Jesus, das Dores, Madalena, São João, numa reconstituição do que teria ocorrido no Monte Calvário. Essa tribuna é vedada por um relevo escultórico excepcional, incomum nas Minas. Nela foram entalhados os emblemas representativos da Paixão do Senhor: a jarra, as mãos de Pilatos, o martelo e a cruz com a legenda SPQR - Senatus populusque romanus, iconografia comum aos cruzeiros da Capitania. Na tampa do sacrário tem-se a representação do cordeiro envolto numa estrutura raionada brilhante, para significar que ele, Cristo a vítima expiatória, é a verdadeira luz do mundo (Jó 8, 12). No frontal do altar figura a balança vazia, doravante sem as benditas almas do purgatório. A imagem de São Miguel tem peanha lisa, levemente ondulada, balança vazia e, infelizmente, perdeu o outro atributo que seria a cruz. Ao invés do apelo tradicional às almas, da presença destacada de São Miguel no trono (tribuna), evoca-se a salvação através dos méritos da Paixão de Cristo.
A obra mais recuada dessa versão iconográfica, localizada em altar de São Miguel, é aquele da Matriz do Pilar (Vila Rica). Ali, a irmandade de São Miguel procedeu à fatura de novo retábulo em 1733, o qual apresenta tribuna espaçosa que, no transcorrer dos anos, foi recebendo figuras da Paixão: em 1736 colocaram o Crucificado, em 1747 Nossa Senhora das Dores, depois a Madalena e o São João (35). Um Calvário alcançado às custas do improviso, seguindo a pulsação do gosto religioso.
O exemplo mais acabado da aliança iconográfica, Paixão e Arcanjo das Almas, ainda que improvisado no transcurso de meio século, encontra-se no templo de São Miguel, Santíssimos Corações e Senhor Bom Jesus de Matosinhos - três invocações em um só monumento - situado no antigo Passa-dez (Cabeças), em Vila Rica. Trata-se da única obra monumental com iconografia das almas na Colônia. É uma representação tardia (a do purgatório), mais sincronizada com a mentalidade da primeira metade do século XVIII. Momento alto da criação local, sintetiza, e simultaneamente renova, representações dispersas e em franca extinção, imortalizando-as através daquela portada, datada do último quartel do setecentos (36). Uma grande obra que materializa e documenta, através da talha em pedra sabão, o culto às almas (Campos, 1998).
Na singular portada da Capela de São Miguel ouropretana há representação das almas no fogo do purgatório (37). Encimando a composição, há nicho ocupado por São Miguel, com escudo e balanças desprovidas de almas. Através de análise estilística, atribui-se o conjunto da portada a Antônio Francisco Lisboa e sua oficina, que executaram obra provavelmente enquanto trabalhavam no frontispício de São Francisco, também em Vila Rica. Apesar do tema representado e de certa frontalidade do Arcanjo, a portada das Cabeças é posterior a 1778, ano em que se lavrava e carregava pedra para aquele frontispício.
Em 1771, José Simões Borges (morador em Congonhas do Campo) legalizava a doação de um terreno ao ermitão Manoel de Jesus Fortes para a edificação da capela no Passa-dez (Vila Rica) (38). A invocação original era Santíssimos Corações e São Miguel e Almas, comumente registrada nos documentos entre 1761-1792, período de construção e ornamentação (incompleta) do templo (39). Contudo, é interessante observar que a decoração interna do templo foi progressivamente inclinando-se à devoção da Paixão, com a aquisição de imagens do Senhor do Sepulcro, Senhor do Bom Jesus, das Dores, São João Evangelista. Talha de confecção tardia, de um Rococó transitando para o clássico. Não bastasse, os irmãos encomendaram uma via-crucis (interna) para a sacristia, envolvendo painéis de Manoel da Costa Ataíde, relevos com mesas de altares e imagem do Senhor dos Passos. A Capela transformou-se em templo de peregrinação, com estalagem para os devotos (40). Aos poucos, o templo dos Santíssimos Corações e São Miguel e Almas assemelhou-se ao santuário de Congonhas, com a diferença de que, em Vila Rica, os Passos da Paixão são internos e naquele são ao ar livre, segundo a tradição ibérica (Massara, 1988).
Há documento de 1867 em que os devotos do Senhor Bom Jesus instituem novo compromisso: doravante "eles pretendem fazer reviver a antiga Irmandade de São Miguel e Almas, erecta na dita capela", cuja veneração, constatamos, foi tão preterida a favor daquela do Senhor do Bom Jesus, a ponto do Glorioso Arcanjo ser convertido em inquilino em seu próprio templo (41). Tudo pela Paixão de Cristo, a maior devoção do setecentos mineiro!
É interessante registrar que o santuário de Congonhas, feito às custas das esmolas levantadas pelo ermitão Feliciano Mendes, funcionava como paradigma devocional durante a segunda metade do setecentos. A partir de então, seguindo a motivação portuguesa, o culto se impõe nas Gerais, preferindo-se os lugares altos e a topografia irregular. Curiosamente, a construção e ornamentação de São Miguel e Almas do bairro das Cabeças é contemporânea à fatura da via sacra escultórica de Congonhas, cujas imagens foram confeccionadas entre 1796-1799. O templo ouropretano, coincidentemente, localiza-se no topo de um sítio íngreme, embora não o suficiente para comportar a presença de um escadório. Apresenta, no entanto, condições adequadas para essa fusão de devoções, ou melhor, o domínio do culto à Paixão. Dessa forma, o templo vilarriquenho amadurece um processo iniciado nos próprios altares de São Miguel e Almas presentes nas igrejas matrizes.
O purgatório do Aleijadinho, tal como o de Dante, situa-se em uma montanha, obtida através da suave ondulação da sobreporta. Nele, homens e mulheres, com feições tranqüilas, purificam-se sem externalizar aflição ou sofrimento. Diferentemente das representações costumeiras, o escultor descobre bastante o peito de algumas almas, destacando ao centro uma figura masculina, representada de corpo inteiro e nu, o que é raridade na iconografia existente na Capitania.
Nessa concepção, há intenção de diferenciar rigorosamente os tipos humanos (masculino/feminino) ainda que não se distingam plenamente os tipos sociais, estes mais freqüentes na iconografia portuguesa. Ainda assim, o Aleijadinho representou, excepcionalmente, um frade (com o tonsura), como também a visão frontal de uma mulher com cabelos longos e soltos, seios expostos, denunciando a profissão e.ou o pecado da luxúria. No purgatório de Vila Rica e nas demais representações das Minas, não ocorrem sinais distintivos - coroa, tiara, mitra etc. Domina uma iconografia avessa às hierarquias tradicionais, afinada assim com a realidade colonial, particularmente a mineira, onde as condições específicas da colonização contribuíram para a diluição precoce do modelo baseado em uma sociedade estamental. Por sua vez, as almas não são dotadas da feição genericamente infantil que caracteriza, via de regra, as obras populares. Aleijadinho as representou adultas e, outrossim, com fisionomia particular, individualização, aliás, também afirmada na pintura do cômodo lado epístola na matriz de São João del Rei (Fig. VIII).
Mais uma vez constatamos que nas Minas, o cuidado de adquirir bens temporais ocupava os homens não prevalecendo a visão infernalizada do purgatório (42). Diante justamente desta particularidade, é coerente apresentar uma visão mais complacente, conformada aos homens daquele tempo!
Encimando o purgatório em um nicho, registro separado e superior, São Miguel de elaborada confecção, não perde a imponência, ao contrário dos Miguéis da talha portuguesa, que descem até as chamas e inclinam-se muito, para, com as próprias mãos, retirar dali as benditas. Essa convivência íntima de graus distintos de santidade não ocorre na portada de Vila Rica, onde se materializa a nítida separação entre as formas de existência no além, mais ou menos santificadas. Reconhecemos que não constitui uma obra de fatura ingênua (composição compacta, ausência de movimento, desproporção). Foi elaborada quando a racionalização do pensamento tendia a apartar não só o mundo dos vivos daquele dos mortos, bem como a estratificar rigorosamente o além dos eleitos. Assim, a visão do purgatório não é infernalizada, mas também não conta com a participação, em seu seio, da companhia direta dos intercessores, segundo o gosto de matriz medieval. Eles se afastam progressivamente para o alto, para o imperscrutável!
A imagem de São Miguel, entalhada na pedra com certa frontalidade, porta balança vazia de almas e escudo que se espraia, à moda de João Gomes Batista, seguindo aquela forma divulgada nos rolos (filactério) dos profetas de Congonhas, o atributo - o escudo - estranho à arte da comarca de Vila Rica, mais freqüente nos acervos das comarcas do Rio das Mortes e Rio das Velhas Fonte: http://migre.me/oxrLv

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