2. Iconografia do Arcanjo e fontes doutrinárias
São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is 28, 17; Jó 31, 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio (Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó.Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição (Male, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de satã seria negra (8).
Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e essencialmente animal. Grabar (1994) observou notável popularidade nessa representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001).
No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano.
Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Refere-se ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus, Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as iniciais.O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência, freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas. Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig. II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio, sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563).
Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel, aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 21; Dn 12, 1; Ap 20, 1-3, Ex 23, 20-21).Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus recebera a missão de conduzir aquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo, dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos.
Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações" (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI. Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas, renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994, 363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig: X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação dos tempos, mas ao juízo individual.
A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo (13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal, notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - V1642). A posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante o Barroco internacional.
Durante a restauração da imagem de São Miguel de Cachoeira do Brumado (distrito de Mariana), realizada em 1993, o CECOR-UFMG localizou pequenos furos para a fixação de pinos nos pratinhos daquelas balanças, entalhados em madeira. Este caso explica a perda de almas que, por serem entalhadas à parte, ficavam mais expostas às lesões. Esclarece também a presença desse atributo em meados do setecentos nas Gerais.Na arte escultórica das Minas Gerais, a representação de almas nas balanças teve duração mais limitada que aquela verificada na pintura, prataria e talha em geral. Neste caso, já não mais conotam um forte sentido escatológico, servindo, sobretudo, como símbolo da Irmandade de São Miguel e Almas. Constitui um simples decalque estético, resíduo ilustrativo de mudanças operadas no sentimento religioso e na espiritualidade daquela época.
O imaginário cristão medieval reconheceu a existência de almas errantes, que tiveram penitências mal cumpridas e estariam penando aqui e acolá, suplicando por preces (15). O catolicismo pós-tridentino se esforçou para desbastar certos aspectos da religiosidade popular, dentre eles encerrando as almas em processo de purificação em uma única topografia do além, isto é, o Purgatório. As almas continuavam a suscitar a sociabilidade, a piedade cristã, só que através de canais formalizados. Não deviam se expor ostensivamente aos homens, causando-lhes temores e embaraços. Nas Minas, a cultura lusitana bem como as tradições populares chegam de uma forma fragmentada, em virtude das condições específicas da colonização, acarretando o enfraquecimento precoce da "onipresença dos mortos e sua coabitação com os viventes" (Vovelle, 1987, p. 199 ss).
Por mais que se tentasse transplantar para o Novo Mundo as instituições, costumes e crenças próprias de sua cultura, o colonizador contava então com a grandeza do território, os poucos núcleos urbanos, a diversidades das culturas e a ausência de tradição cristã autóctone. Do ponto de vista europeu, um verdadeiro caos, uma conspiração contra a preservação do imaginário católico e também dos valores da religiosidade popular de matriz medieval.
Por sua vez, o território das Gerais foi desbravado apenas em fins do seiscentos, com o estabelecimento das primeiras vilas em 1711. Portanto, entre a ocupação litorânea do Brasil e o povoamento da Capitania, houve um hiato de quase 200 anos (Ramos, 2001). Nela foram os próprios leigos que, assentando-se socialmente erigiram as irmandades (Boschi, 1986). Deste modo, percebe-se uma mutação significativa na mentalidade religiosa de origem, no sentido de dificultar a coesão, a solidariedade e o enraizamento das tradições.
Enquanto a Capitania das Minas se mantinha esquiva à edificação das alminhas, na Ibéria elas se alastravam pelo meio urbano e rural do seiscentos e do setecentos. Não bastasse a ausência daqueles oratórios com a invocação das almas, a própria representação daquelas criaturas desapareceu precocemente; primeiro das balanças, depois dos frontais de altares e de outros objetos de culto. Trata-se de um motivo em extinção nas artes figurativas, ainda que a devoção persistisse, sem o entusiasmo verificado no mundo ibérico. As Almas Santas eram veneradas, contudo sem a vontade expressa de objetivar, através de obras visuais, esse culto em particular. Por outro lado, não podemos afirmar que a devoção já se encontrasse profundamente interiorizada, a ponto de não precisar se manifestar no domínio concreto, pois os testamentos mineiros não atestam apreço expressivo às benditas do Purgatório, a não ser nas primeiras décadas.
São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is 28, 17; Jó 31, 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio (Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó.Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição (Male, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de satã seria negra (8).
Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e essencialmente animal. Grabar (1994) observou notável popularidade nessa representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001).
No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano.
Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Refere-se ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus, Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as iniciais.O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência, freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas. Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig. II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio, sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563).
Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel, aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 21; Dn 12, 1; Ap 20, 1-3, Ex 23, 20-21).Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus recebera a missão de conduzir aquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo, dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos.
Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações" (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI. Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas, renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994, 363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig: X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação dos tempos, mas ao juízo individual.
A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo (13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal, notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - V1642). A posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante o Barroco internacional.
Durante a restauração da imagem de São Miguel de Cachoeira do Brumado (distrito de Mariana), realizada em 1993, o CECOR-UFMG localizou pequenos furos para a fixação de pinos nos pratinhos daquelas balanças, entalhados em madeira. Este caso explica a perda de almas que, por serem entalhadas à parte, ficavam mais expostas às lesões. Esclarece também a presença desse atributo em meados do setecentos nas Gerais.Na arte escultórica das Minas Gerais, a representação de almas nas balanças teve duração mais limitada que aquela verificada na pintura, prataria e talha em geral. Neste caso, já não mais conotam um forte sentido escatológico, servindo, sobretudo, como símbolo da Irmandade de São Miguel e Almas. Constitui um simples decalque estético, resíduo ilustrativo de mudanças operadas no sentimento religioso e na espiritualidade daquela época.
O imaginário cristão medieval reconheceu a existência de almas errantes, que tiveram penitências mal cumpridas e estariam penando aqui e acolá, suplicando por preces (15). O catolicismo pós-tridentino se esforçou para desbastar certos aspectos da religiosidade popular, dentre eles encerrando as almas em processo de purificação em uma única topografia do além, isto é, o Purgatório. As almas continuavam a suscitar a sociabilidade, a piedade cristã, só que através de canais formalizados. Não deviam se expor ostensivamente aos homens, causando-lhes temores e embaraços. Nas Minas, a cultura lusitana bem como as tradições populares chegam de uma forma fragmentada, em virtude das condições específicas da colonização, acarretando o enfraquecimento precoce da "onipresença dos mortos e sua coabitação com os viventes" (Vovelle, 1987, p. 199 ss).
Por mais que se tentasse transplantar para o Novo Mundo as instituições, costumes e crenças próprias de sua cultura, o colonizador contava então com a grandeza do território, os poucos núcleos urbanos, a diversidades das culturas e a ausência de tradição cristã autóctone. Do ponto de vista europeu, um verdadeiro caos, uma conspiração contra a preservação do imaginário católico e também dos valores da religiosidade popular de matriz medieval.
Por sua vez, o território das Gerais foi desbravado apenas em fins do seiscentos, com o estabelecimento das primeiras vilas em 1711. Portanto, entre a ocupação litorânea do Brasil e o povoamento da Capitania, houve um hiato de quase 200 anos (Ramos, 2001). Nela foram os próprios leigos que, assentando-se socialmente erigiram as irmandades (Boschi, 1986). Deste modo, percebe-se uma mutação significativa na mentalidade religiosa de origem, no sentido de dificultar a coesão, a solidariedade e o enraizamento das tradições.
Enquanto a Capitania das Minas se mantinha esquiva à edificação das alminhas, na Ibéria elas se alastravam pelo meio urbano e rural do seiscentos e do setecentos. Não bastasse a ausência daqueles oratórios com a invocação das almas, a própria representação daquelas criaturas desapareceu precocemente; primeiro das balanças, depois dos frontais de altares e de outros objetos de culto. Trata-se de um motivo em extinção nas artes figurativas, ainda que a devoção persistisse, sem o entusiasmo verificado no mundo ibérico. As Almas Santas eram veneradas, contudo sem a vontade expressa de objetivar, através de obras visuais, esse culto em particular. Por outro lado, não podemos afirmar que a devoção já se encontrasse profundamente interiorizada, a ponto de não precisar se manifestar no domínio concreto, pois os testamentos mineiros não atestam apreço expressivo às benditas do Purgatório, a não ser nas primeiras décadas.
Um modelo iconográfico que obteve relativo sucesso nas obras refinadas, imitado algumas vezes naquelas de confecção popular, representou São Miguel com gládio. Em substituição à popular lança, o gládio inspirava-se na aparição do Arcanjo ao papa Gregório em 815, ocasião em que o teria desembainhado banhado em sangue (Vorágine, 1990, p. 622). Essa vertente apresenta a dupla gládio e escudo podendo prescindir da presença do demônio em favor de base em forma de monte, pois Miguel preferira sempre aparecer aos homens sobre montanhas (cf. Reau, 1996; Attwater, 1991).
Conforme a Visão de Paulo, os anjos brilham como sol, têm o nome de Deus inscrito no peito, trazem a palma - símbolo da vitória contra o mal, e a cruz, símbolo maior para o cristão (Erbetta, 1981, 362). Na obra La leyenda Dorada (1260), São Miguel é relacionado não só com o Juízo Final, mas particularmente com a figura de Cristo, que exercerá o papel de juiz (Vorágine, 1990, II, 621). Como o segundo mais importante nessa cena, o Arcanjo se apresentará diante do último tribunal portando a cruz, os cravos, a lança e a coroa de espinhos (16).
Desde o Renascimento e o Maneirismo, a produção visual explorou bastante o liame estabelecido entre Miguel, a Paixão de Cristo e a consumação dos tempos. Na tábua quinhentista, anônima, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, alusiva ao Julgamento das Almas, Miguel traz a espada e uma longa haste, ambas com arremates cruciformes. Na gravura maneirista de Jérôme de Wierx (Fig. VII) existente na Biblioteca Nacional de Paris, de fins do quinhentos, Miguel é representado ao centro, com o destaque que merece em face dos demais arcanjos, trazendo aos pés um demônio animalesco, a palma à esquerda e a cruz abandeirada, à direita. Na pintura de Santo Antão, em Évora, Corte Real o representa com a palma da vitória e com o braço direito para o alto, encimado pela inscrição Quis ut Deus. E no coroamento encontra-se um painel circular; nele estão justapostos o Pai e o Filho crucificado (17).
A palma foi atributo de pouca difusão no barroco, enquanto a cruz assumiu relevância enorme no conjunto das obras da época Moderna (18). Despojada ou ornamentada, ela ocupou ostensivamente a paisagem, morros, encruzilhadas, pontes e adros, destacando-se também como atributo iconográfico dos mais concorridos. Pietro de Cortona (1596 - V1665) registrou essa aliança iconográfica, que unifica o culto à Paixão, aos anjos e ao Arcanjo Miguel. Nela, figuras angélicas de delicados gestos apresentam os martírios de Cristo, enquanto, no centro da composição, Miguel - com manto revolto, asas amplas e penacho exuberante - sustenta graciosamente o Santo Lenho. No catolicismo barroco, essa iconografia desenvolveu-se particularmente, transformando-se em um programa, concorrendo com as versões tradicionais, inspiradas nos modelos fornecidos por Gárgano, Mont Saint Michel e portadas medievais. Entretanto, São Miguel conservou sua feição escatológica. Com a cruz (abandeirada ou não) continuou a aludir à consumação dos tempos, só que de um modo abrandado (19).
O atributo cruz, no entanto, não diz respeito apenas a uma projeção futura. Das inúmeras aparições do Arcanjo consta uma, assaz interessante, que suscitou expressiva produção artística. Segundo a tradição religiosa, São Francisco (1182 V1226) jejuava e orava em louvor a São Miguel no Monte Alverne, em setembro. Neste mês inscrevem-se duas festas: a celebração do Arcanjo Miguel e a Exaltação da Cruz. Na ocasião, Francisco meditava sobre a Paixão de Cristo e, por amor, quis compartilhar as dores do Calvário, recebendo os estigmas da Paixão. Segundo o padre Antônio Vieira e a literatura piedosa coeva, o anjo que imprimiu as chagas em São Francisco fora Miguel (Vieira, 1646/1945). Por essa razão os franciscanos veneram São Miguel e fizeram questão de criar, no século XII, uma iconografia precisa para a cena da imposição dos estigmas.
No barroco luso-brasileiro, os terceiros franciscanos, cientes da tradição iconográfica da ordem, repetem-na nos altares de seus templos e nas imagens que saíam às ruas nos andores das “Chagas” e do “Amor Divino” por ocasião da procissão de Quarta-feira de Cinzas (Campos, 2001). Com a iconografia citada, sobressai o medalhão existente na portada magistral de São Francisco de Assis, de Vila Rica (Cf. Trindade, 1951).
Desde o Renascimento e o Maneirismo, a produção visual explorou bastante o liame estabelecido entre Miguel, a Paixão de Cristo e a consumação dos tempos. Na tábua quinhentista, anônima, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, alusiva ao Julgamento das Almas, Miguel traz a espada e uma longa haste, ambas com arremates cruciformes. Na gravura maneirista de Jérôme de Wierx (Fig. VII) existente na Biblioteca Nacional de Paris, de fins do quinhentos, Miguel é representado ao centro, com o destaque que merece em face dos demais arcanjos, trazendo aos pés um demônio animalesco, a palma à esquerda e a cruz abandeirada, à direita. Na pintura de Santo Antão, em Évora, Corte Real o representa com a palma da vitória e com o braço direito para o alto, encimado pela inscrição Quis ut Deus. E no coroamento encontra-se um painel circular; nele estão justapostos o Pai e o Filho crucificado (17).
A palma foi atributo de pouca difusão no barroco, enquanto a cruz assumiu relevância enorme no conjunto das obras da época Moderna (18). Despojada ou ornamentada, ela ocupou ostensivamente a paisagem, morros, encruzilhadas, pontes e adros, destacando-se também como atributo iconográfico dos mais concorridos. Pietro de Cortona (1596 - V1665) registrou essa aliança iconográfica, que unifica o culto à Paixão, aos anjos e ao Arcanjo Miguel. Nela, figuras angélicas de delicados gestos apresentam os martírios de Cristo, enquanto, no centro da composição, Miguel - com manto revolto, asas amplas e penacho exuberante - sustenta graciosamente o Santo Lenho. No catolicismo barroco, essa iconografia desenvolveu-se particularmente, transformando-se em um programa, concorrendo com as versões tradicionais, inspiradas nos modelos fornecidos por Gárgano, Mont Saint Michel e portadas medievais. Entretanto, São Miguel conservou sua feição escatológica. Com a cruz (abandeirada ou não) continuou a aludir à consumação dos tempos, só que de um modo abrandado (19).
O atributo cruz, no entanto, não diz respeito apenas a uma projeção futura. Das inúmeras aparições do Arcanjo consta uma, assaz interessante, que suscitou expressiva produção artística. Segundo a tradição religiosa, São Francisco (1182 V1226) jejuava e orava em louvor a São Miguel no Monte Alverne, em setembro. Neste mês inscrevem-se duas festas: a celebração do Arcanjo Miguel e a Exaltação da Cruz. Na ocasião, Francisco meditava sobre a Paixão de Cristo e, por amor, quis compartilhar as dores do Calvário, recebendo os estigmas da Paixão. Segundo o padre Antônio Vieira e a literatura piedosa coeva, o anjo que imprimiu as chagas em São Francisco fora Miguel (Vieira, 1646/1945). Por essa razão os franciscanos veneram São Miguel e fizeram questão de criar, no século XII, uma iconografia precisa para a cena da imposição dos estigmas.
No barroco luso-brasileiro, os terceiros franciscanos, cientes da tradição iconográfica da ordem, repetem-na nos altares de seus templos e nas imagens que saíam às ruas nos andores das “Chagas” e do “Amor Divino” por ocasião da procissão de Quarta-feira de Cinzas (Campos, 2001). Com a iconografia citada, sobressai o medalhão existente na portada magistral de São Francisco de Assis, de Vila Rica (Cf. Trindade, 1951).
Tratamos aqui das variantes iconográficas básicas próprias da devoção ao Arcanjo Miguel, o que não descarta, porém, a existência de outras possíveis combinações. Observamos, entretanto, que o modelo em ascensão já nas primeiras décadas do setecentos mineiro, diga-se de concepção bastante culta, exalta a veneração à Paixão de Cristo. Fonte: http://migre.me/oxrLv
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