sábado, 7 de fevereiro de 2015

Parte 05 - São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Modenra - (créditos - Adalgiza Arantes Campos - Universidade Federal de Minas Gerais)

5. A iconografia do Arcanjo Miguel nas Minas Gerais
Na arte colonial mineira Miguel foi representado de diversas maneiras. Em obras cuja datação é mais recuada, traz uma bota pesada e austera. Em fins do primeiro quartel do setecentos, o rude calçado vai dando lugar a uma sandália vazada apenas nos dedos, com arremate trabalhado nas bordas, à maneira de Jérôme de Wierx, demonstrando-se, assim, a intenção ornamental. No geral, as imagens datáveis da primeira metade do século exibem as pernas bem recobertas por um calçado fechado. A partir de então, desenvolve-se uma versão graciosa: a sandália de tiras trançadas à moda Guido Reni, colocando à mostra os pés e as pernas do Arcanjo. Desse modo, nas imagens do Rococó há preferência pela leveza, elegância e sensualidade. São formas mais adequadas à vida urbana do que ao mundo rural. Essa trajetória, igualmente verificada no acervo europeu, evidencia a passagem de um modelo severo (Barroco) a outro mais arejado (Rococó). O academismo oitocentista trataria de recuperar a austeridade, retornando às sandálias levemente vazadas. A bota foi usual nos lugares de ocupação mais antiga, nos primeiros núcleos de povoamento, decorrentes do desbravamento dos bandeirantes. Nas versões mais populares continuou compacta. Denuncia o contato direto com o meio natural. Contudo, não é específica da Capitania, e não foi colocada para expressar as dificuldades enfrentadas diante do mundo natural. Por sua vez, a sandália parcialmente vazada (nos pés) é coetânea com as povoações mais recentes, às vezes decorrentes de um remanejamento interno das populações, quando já se tem estabelecido o perfil urbano da Capitania. O calçado de São Miguel fornece, portanto, indicações para a datação do acervo cultural e sobre a modernização superficial da peça, caso tenha sido "maquiada" conforme o gosto Rococó. Convém salientar que, em geral, por obedecerem à tradição, nas obras mais rústicas, houve a tendência a prolongar o uso da bota completamente fechada.
Outro atributo importante para a iconografia de Miguel é o demônio Freqüente nas peças do primeiro terço do setecentos, desaparece rapidamente, para voltar à cena com o academismo oitocentista. Nas concepções eruditas, é representado à maneira antropomórfica; nas populares, apresenta forma assaz variável, mas sempre tendendo para o animalesco. A vertente erudita foi a maior responsável pela retirada do demônio da peanha das imagens, em favor do monte ou das nuvens. Conforme a tradição religiosa, São Miguel manifestou-se aos homens em solo montanhoso - Itália, França, Inglaterra... (Attwater, 1991; Reau, 1996). Segundo a doutrina, Miguel tem uma missão escatológica, pois estará ao lado do Senhor no Juízo Final, quando então trará arvorada a Santa Cruz. Os atributos monte ou nuvens, que dominam a iconografia nas Gerais, aparecem durante as primeiras décadas do setecentos, disputando, tanto nas obras de confecção mais elaborada quanto naquelas ingênuas, com a representação do demônio. O popular segue na esteira do erudito, imitando-o, divulgando-o e até degradando-o (Grabar, 1994, p. 396 ss). Em fins do primeiro terço do setecentos, o monte ou as nuvens, às vezes indistinguíveis, se impõem definitivamente nas peanhas das imagens eruditas. Embora haja imagens sobre nuvens ou montes, portando as botas aludidas, a sandália mais austera ou plenamente vazada ajusta-se melhor ao novo tipo iconográfico, desprovido de satã; mudança esta também com preferência pelas composições graciosas e leves.
Na iconografia das Minas, a lança encontra-se presente desde tempos recuados. Às vezes com sentido funcional - submeter o demônio - outras, meramente para compor a imagem. Durante o primeiro quartel do setecentos mineiro, houve uma tendência, inclusive já explorada anteriormente na arte medieval, a dar a forma crucífera ao arremate da lança, a qual serve de suporte para uma bandeirola. Com o tempo, esta lança cruciforme transforma-se em uma cruz bastante leve, mais adequada para as peanhas compostas de nuvens ou montanha. Com isso destacamos que muitas imagens carentes de atributos (à mão direita), necessariamente não teriam a lança, sobretudo se a peanha é formada por montanha ou nuvens. Portanto, a partir da terceira década do século XVIII, a representação do Arcanjo passa a contar, de maneira progressiva, com a cruz, que pode estar substituindo a lança ou gládio. Verificamos que composições do período Rococó compartilham da afeição à Paixão de Cristo, generalizada nessa época na religiosidade da Capitania, relevando o atributo cruz, ao invés da lança e do gládio. A introdução da cruz nas imagens atinge a maior popularidade nas manifestações do Rococó.
O gládio e o escudo, identificados no acervo proveniente da comarca do Rio das Velhas e na do Rio das Mortes, são atributos mais raros, atingem o Rococó, mas de maneira bastante particularizada.
Sem dúvida, o atributo mais costumeiro e duradouro, que não deixa esmaecer na memória a face escatológica de São Miguel, é a balança, existente em todo o período contemplado (sempre à mão esquerda). Ela acompanha a lança, o gládio, a cruz, enfim é compatível com todos os atributos. Do Barroco ao Rococó, as balançinhas constituem o atributo mais recorrente. No entanto, modifica-se no transcorrer do setecentos mineiro: nos modelos mais recuados pode conter a representação de almas, enquanto nas obras de meados do século e particularmente do Rococó é rara tal presença. É como se essas criaturas fossem rapidamente retiradas do mundo visível (artístico e religioso) e, então, alocadas definitivamente lá, no purgatório!
No escoar do setecentos mineiro, as imagens alusivas a São Miguel perderam a austeridade, tanto no que diz respeito à contenção do movimento na talha quanto na policromia. As feições assumem a expressão doce, angélica, meio afeminada. Os capacetes tornam-se delicados, sofisticados, cada vez mais distantes da rígida forma inicial. A composição obedece à construção em diagonais, possibilitando a movimentação das massas, revelada em volumoso e revolto manto e vestimenta pouco militar, dotada de suave galanteria!
Minas Gerais deixou vasto acervo iconográfico alusivo a São Miguel, dia a dia em processo de descontextualização. Inicialmente, bastante marcado pela influência ibérica, porém, precocemente criou opções próprias, voltadas para a depuração escatológica, - supressão das almas -, e notadamente para o culto à Paixão. Na última grande obra em homenagem a Miguel, isto é, a pintura da nave da igreja paroquial de Arcângelo de Joaquim José da Natividade (XIX), ele ajoelha-se diante da Santíssima Trindade, despojando-se do gládio e da cruz abandeirada. Trata-se de uma nova época, mais afirmativa da vida terrena e despreocupada em relação ao além!
Fonte: http://migre.me/oxrLv

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