sábado, 7 de fevereiro de 2015

Parte 1 - São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Modenra - (créditos - Adalgiza Arantes Campos - Universidade Federal de Minas Gerais)

1. Antecedentes do culto em Portugal
A devoção a São Miguel Arcanjo (
1) suscitou a produção de objetos diversificados: imagens, pinturas, moedas e medalhas, selos ou mesmo a representação integrada às cenas do Juízo Final, existentes nas portadas do Românico, paredes e abóbadas do Gótico e Maneirismo (Male, 1947). Fontes escritas confirmam a amplitude da crença; no Purgatório, de Dante Alighieri, as almas recorrem à intercessão de São Miguel (PURG. XIII, 49-51); nos Livros de Horas, literatura piedosa de grande circulação até a época Moderna, o Arcanjo luta contra o demônio, salvando os justos para a imortalidade (2). A Ibéria não se esquiva a esse pendor devocional, finalizando encenações do teatro religioso, como o Auto da Ave Maria (de Antônio Prestes), com mensagens edificantes proferidas por São Miguel (Martins, 1969, vol.2, p.10).
Em Coimbra, o Museu Machado de Castro conserva três esculturas em pedra, do século XV, duas delas mesclam bem características medievais e renascentistas. Das portadas medievais herdaram a presença de almas nas balanças. A instituição possui ainda o retábulo de São Miguel, proveniente de Santa Clara (convento velho), do escultor João de Ruão (1537) (Cf. Borges, 1980, p.51). Nessa composição arquitetural, compartimentada em seis nichos distribuídos em dois registros, São Miguel é representado na parte superior, com a tradicional balança com almas. Naquele altar de Santa Clara, o Arcanjo perdeu as balanças, que, seguindo o gosto da época, também teriam almas. O culto a São Miguel foi recuado entre os portugueses, assumindo destaque a partir de D. João III que, por lhe ter tido especial devoção, alcançou do papa, Adriano VI, autorização para que fossem celebrados os ofícios de S. Miguel, na Capela Real (1522) (cf. Albuquerque, 1995). Intitulado o Piedoso, o rei obteve a titularidade das Ordens Militares, cuja união à Coroa foi adquirida da Cúria Romana que lhe rendeu o cargo de Mestre da Ordem de Cristo. A devoção e o fato de ter sido o primeiro monarca titular da Ordem, explica a presença do arcanjo no escudo.
A Capela de São Miguel, integrada aos prédios que compõem o conjunto da Universidade de Coimbra, possui soberba portada manuelina, bem como decoração interna bastante erudita, datada dos séculos XVII e XVIII, fato que ratifica a presença particular desse culto no âmbito das elites governantes (3).Em Portalegre, na Igreja da Sé, pode-se observar no retábulo, sob invocação da Virgem do Carmo, a representação de São Miguel em um dos quatorze painéis de feição maneirista, pintados por Luís de Morales, em 1616 (Serrão, 1987).
Concluindo este rol sumário de obras lusitanas anteriores ao Barroco, menciona-se o retábulo de São Miguel no templo de Santo Antão, em Évora, feito por Jerônimo Corte Real na segunda metade do quinhentos (Gonçalves, 1959). Face ao presente acervo, observamos a veneração a São Miguel, a propósito bastante recuada entre os portugueses, onde teve excelente contextualização histórica, para então se alastrar no ultramar, inclusive sob os auspícios do Concílio Tridentino (1545/1563).
Motivado pela tradição e também pela reforma religiosa, o culto a São Miguel atinge a cidade e o campo, atraindo os governantes, o clero regular, secular e os leigos (4). Durante o seiscentos e setecentos, transforma-se em um culto dotado de bases sociológicas ampliadas. Domina por completo as manifestações mais populares, compartilhando, muitas vezes o mesmo altar com outra invocação, notadamente das Almas do Purgatório, das quais é considerado o principal defensor. Em Portugal, a representação do Arcanjo tornara-se freqüente nos painéis existentes nos monumentos denominados alminhas. A exposição alusiva ao culto às Almas do Purgatório (1993), organizada pelo Museu de Etnografia de Póvoa do Varzim (Fig.I), divulgou através de imagens, telas e retábulos de feição bastante popular a amplitude dessa devoção (5).
No Porto, a representação de São Miguel encontra-se no convento de Santa Clara, nos Congregados, em São Pedro dos Clérigos e no forro da Casa do Cabido da Sé, onde o pintor Pachini (1737) reservou-lhe o painel central, pois é considerado o patrono daquele Cabido. Ladeando a Sé, tem-se a fonte entalhada por Nicolau Nasoni (1736), através da qual a representação dupla em relevo e escultura de Miguel atinge o espaço público, tal é a vitalidade da devoção entre os lusitanos.
Lisboa também possui acervo representativo: o templo dedicado a São Miguel em Alfama, a imagem luxuosa com capacete, estandarte e asas de prata do Museu da Sé; numa versão mais popular, o Miguel com almas nas balanças e na peanha da igreja de Santa Madalena (6); esculturas e os azulejos do Museu de Madre de Deus, duas imagens expostas no Museu de Arte Antiga, a excepcional pintura de autoria de André Gonçalves (1685 - V1762) na tribuna de altar lateral de Menino de Deus (7), dentre outras.
O presente arrolamento expande aquele iniciado por Flávio Gonçalves e então, reunidos, fornecem um conjunto expressivo de objetos devocionais dedicados a São Miguel no âmbito das manifestações culturais do colonizador (Gonçalves, 1959, 1963).
Salienta-se a presença da devoção na Espanha Andaluza e na Galícia, divulgada na América, onde, a propósito, existem bons exemplos apelativos da proteção do Arcanjo.
A partir da constatação da representatividade do acervo inventariado, tentamos estabelecer tipos iconográficos que nos ajudariam a compreender os modelos desenvolvidos nas Minas Gerais. Existem iconografias com duração prolongada, outras bastante particularizadas no tempo e espaço, sem continuidade no Barroco luso-brasileiro.  
Fonte: http://migre.me/oxrLv

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