sábado, 7 de fevereiro de 2015

Parte 3 - São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Modenra - (créditos - Adalgiza Arantes Campos - Universidade Federal de Minas Gerais)

3. A Devoção a São Miguel e Almas no âmbito da Capitania de Minas Gerais
Em Os leigos e o poder, há relação com trinta e cinco irmandades sob a invocação de São Miguel e Almas existentes na Capitania das Minas, montante que as coloca em terceiro lugar, em termos de invocação institucionalizada, sobrepujada primeiramente pelas irmandades do Rosário dos Pretos e, em segundo, pelas do Santíssimo Sacramento (Boschi, 1986, 187-188). Não se trata de particularidade das Gerais, visto que também em Portugal e na França da época Moderna houve classificação semelhante das devoções, o que atesta, no plano da religiosidade, a popularidade atingida por esse culto (20).
A devoção, recuada como vimos, foi reavivada com o Concílio Tridentino, juntamente com os coros angélicos e Almas do Purgatório. No barroco luso-brasileiro foi ratificada pelas Constituiçoens Primeiras:
(...) encomendamos muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de servirem, e venerarem nellas aos Santos, principal­mente á do Santíssimo, e do nome de Jesus (esta não se desenvolve), á de N. Senhora, e das Almas do Purgatório... porque estas Confrarias he bem as haja em todas as Igrejas (LX-869).
Levantamos cerca de 60 localidades mineiras que possuíram irmandades de São Miguel e Almas ou então apenas a devoção, atestada pela existência de obras artísticas, capelas ou denominação de sítios. Neste caso, são lugares em que o culto não chegou a ser institucionalizado. O nosso estudo considera tanto a existência legal da irmandade, como a presença de imagens em nichos e museus, os retábulos com emblemas das almas sob a invocação do Glorioso Arcanjo.
A devoção a Miguel Arcanjo acompanhou a rota de ocupação do território das Minas (21). Geralmente as igrejas que foram elevadas à sede de paróquia no primeiro quartel do setecentos tinham as irmandades do Rosário dos Pretos, das Almas e necessariamente do Santíssimo Sacramento. Por sua vez, na região de colonização mais recente como, por exemplo, a Comarca do Serro do Frio, a devoção não provocou o mesmo fervor, resultando em diminuto acervo (22).
A antigüidade e a relevância do culto às Almas são confirmadas pelo lugar destacado de seu altar, sempre na proximidade do arco-cruzeiro, o primeiro do lado da Epístola, fronteiro a outro sob invocação de Nossa Senhora (23). Nas localidades que se conservaram indiferentes às novas devoções do oitocentos e do novecentos, é possível constatar, ainda, a presença do altar e respectivo Arcanjo exatamente na concepção original. Há casos em que a invocação deixa o altar primígeno, distanciando-se da vizinhança da capela-mor, em favor de devoções mais atraentes - Senhor dos Passos, Nossa Senhora das Dores, Coração de Jesus... ou, então, é obrigado a dividir a tribuna com outro santo. Ironicamente, transforma-se em inquilino no próprio altar. Face a esse processo, dia a dia em aceleração, o Arcanjo foi perdendo devotos. Suas imagens, das requintadas às populares, progressivamente vêm sendo deslocadas para museus e coleções particulares. A devoção suscitou enorme acervo cultural que atrai a atenção dos comerciantes do setor, vigilantes ao lento arrefecimento do culto. Com isso, tem-se a dispersão gradativa dos bens culturais alusivos ao culto a São Miguel e Almas, que dificulta a realização de um mapeamento mais completo.
Na Capitania, as irmandades de São Miguel foram, mormente constituídas por brancos, embora no plano individual a veneração não fosse restrita. Observamos documentalmente que, na maioria das vilas, na ausência das Misericórdias, as irmandades do Glorioso Arcanjo alugavam seu esquife (tumba) a preços módicos ou até mesmo faziam o funeral daqueles que não tinham recursos para isso (24). Supomos que tal particularidade tenha sido a razão da veneração declarada dos negros e pardos e daqueles que eram pobres em geral (25). Reau estabelece uma conexão entre o culto a Miguel e a tumba da boa morte (talvez inspirado remotamente na barca egípcia), motivo pelo qual o Arcanjo foi cultuado não só em altares, templos e oratórios, mas também em cemitérios.
Por sua vez o período áureo das confrarias de São Miguel e Almas coincidiu no plano político com o longo governo de D. João V (1707 - V1750), qualificado pelo Sumo Pontífice de fidelíssimo e pela historiografia de "o rei barroco" (Bebiano, 1987; D'Araújo, 1989). Declarada foi a sua inclinação para a religião, as artes em geral e especialmente em favor das Almas do Purgatório. Portanto, a propagação das irmandades das Almas além de contar com o estímulo das autoridades eclesiásticas, baseava-se na compreensão pessoal do rei. Era um ir e vir de influências mútuas, enfim uma devoção compartilhada. Entende-se assim por que o culto às Almas do Purgatório sensibiliza a Capitania, mormente durante o governo joanino, sobretudo antes da longa doença que acometeu daquele protetor pródigo.

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