terça-feira, 12 de janeiro de 2016

São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Moderna (Transcrição)

2. Iconografia do Arcanjo e fontes doutrinárias São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is 28, 17; Jó 31, 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio (Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó. Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição (MALE, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de satã seria negra (8). Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e essencialmente animal. GRABAR (1994) observou notável popularidade nessa representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001). No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano. Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Referese ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus, Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as iniciais. O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência, freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas. Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig. II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio, sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563).
 Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel, aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 21; Dn 12, 1; Ap 20, 1- 3, Ex 23, 20-21). Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus recebera a missão de conduzir aquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo, dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos. Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações" (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI. Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas, renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994, 363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig: X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação dos tempos, mas ao juízo individual. A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo (13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal, notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - =1642). A posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante o Barroco internacional
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Fonte: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/artigo07.pdf

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