2. Iconografia do Arcanjo e fontes doutrinárias
São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja
passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is
28, 17; Jó 31, 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais
importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio
(Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição
Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó.
Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por
Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar
nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro
dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante
recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição
(MALE, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de
satã seria negra (8).
Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e
essencialmente animal. GRABAR (1994) observou notável popularidade nessa
representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento
nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços
humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas
representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio
antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível
encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida
entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato
Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001).
No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade
estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo
possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano.
Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra
passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Referese
ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus,
Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática
Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as
iniciais.
O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência,
freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas.
Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig.
II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio,
sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que
significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as
balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI
como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel
de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa
interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi
dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam
abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563).
Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca
de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel,
aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o
misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As
poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a
dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não
bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 21; Dn 12, 1; Ap 20, 1-
3, Ex 23, 20-21).
Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no
momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus
recebera a missão de conduzir aquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a
São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de
refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da
ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente
ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal
bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração
para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas
por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo,
dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve
sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de
imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos.
Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem
perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações"
(Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada
para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e
conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da
balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI.
Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos
em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros
acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência
apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no
século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas,
renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade
religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular
concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental
medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes
preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da
aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994,
363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com
balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig:
X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação
dos tempos, mas ao juízo individual.
A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo
(13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas
desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a
representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de
Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa
Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes
nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens
datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou
bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do
Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal,
notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - =1642). A
posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças
vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante
o Barroco internacional
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Fonte: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/artigo07.pdf
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