domingo, 31 de janeiro de 2016

EM BUSCA DA SALVAÇÃO: VIVÊNCIA DA FÉ E VIDA COTIDIANA ENTRE OS IRMÃOS DE SÃO MIGUEL E ALMAS. SÃO JOÃO E SÃO JOSÉ DEL REI (1716-1804) (Transcrição)

1.3. O culto a São Miguel Arcanjo e a intercessão dos santos: o apoio aos mortos No que tange à ideia do combate entre as forças do Bem e as forças do Mal, entre Deus e o Diabo, destaca-se o culto ao arcanjo São Miguel que, baseando-se em algumas passagens bíblicas80 , é o chefe das milícias celestes, sendo o responsável por combater e aprisionar o demônio/dragão:
Houve uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu. (Ap. 12, 7-8) 
Isidoro, bispo de Sevilha81, em sua obra sobre as etimologias do saber antigo define os anjos como mensageiros celestes, responsáveis por serem os transmissores da vontade de Deus aos homens, estabelecendo a sua classificação em nove categorias diferentes, fazendo referência particular a São Miguel ao caracterizar as propriedades dos arcanjos, seres espirituais incumbidos da transmissão das mensagens divinas de maior relevo ao conjunto da humanidade. 82 Em seu estudo sobre a difusão do culto a São Miguel na religiosidade moçárabe em Portugal nos séculos IX-XI, Mário de Gouveia revela um quadro de representações, em larga medida tributário do pensamento isidoriano, onde os anjos são os intermediários entre a natureza divina e a natureza humana, por serem eles os detentores privilegiados do conhecimento de Deus. A privilegiada contemplação de Deus lhes garante 
                         um dom que os afasta do humano efémero e os consagra como modelos de eleição para toda a humanidade. Como intervenientes na administração do universo, são os anjos que regem a ordem natural das coisas sob desígnio expresso de Deus e detêm nas suas poderosas mãos o ministério da salvação. 83
Sendo então o grande responsável por combater o Demônio e aplicar a justiça divina, São Miguel Arcanjo ganha um papel de destaque na iconografia do fim dos tempos simbolizando o laço que une os locais inferiores às alegrias celestes. Em seu trabalho sobre o surgimento e desenvolvimento da iconografia do Purgatório na Europa ocidental, Michel Vovelle afirma que é recorrente, até o final do século XIII, encontrarmos tanto no cenário esculpido ou pintado das igrejas quanto nas gravuras dos manuscritos, a fiel permanência da representação do esquema binário da luta entre o Bem e o Mal pela posse das almas, refletida no esquema escatológico do Inferno versus Paraíso, “cuja evocação é quase sempre inserida no quadro de um juízo final sob a égide divina, enquanto São Migue atua na triagem dos eleitos de um lado, e dos reprovados de outro, lançados ao Demônio e à boca do Inferno”.84 A partir do século XII, a atitude do homem diante de seu destino espiritual começou a se modificar, passando este a exercer um papel cada vez mais atuante na luta por sua salvação. No início do feudalismo, a ruptura com a existência pecadora se manifestava pela recusa da vida profana, ou seja, no afastamento do mundo através do recolhimento a umclaustro ou no isolamento do deserto. No século XII, essas formas exteriores de conversão que procurava a pureza e a salvação na radical negação da carne e da matéria subsistiram; contudo, passaram a existir outras correntes, como as ordens mendicantes que, tendo como referência as dores e os tormentos de Cristo, produziram simultaneamente a espiritualidade penitencial e a “religião das obras”, que despertaram grande sucesso entre os leigos, instituindo as ordens terceiras85 , e estiveram na origem dos movimentos ascéticos e de uma verdadeira revolução nas práticas caritativas. Para salvar o mundo, não bastava mais rezar; era preciso agir, lutar por ele. A longo prazo, essas transformações da espiritualidade acarretaria uma desvalorização da vida no claustro86 . A difusão do ideal apostólico – movimento de grande devoção à figura do Cristo sofredor –, assim como a influência da pregação dos eremitas, contribuíram para o desencadeamento da espiritualidade das cruzadas, lançadas pelo papa Urbano II em 1095 e que duraria até o início do século XIII 87 . Movidos especialmente por princípios milenaristas, os objetivos dos cruzados eram a ajuda aos cristãos do Oriente e a libertação do túmulo de Cristo, entendendo que Deus lhes havia designado a missão de purificar o mundo do mal, a fim de preparar a sua volta gloriosa. Os anjos são os mais altos representantes do mundo celeste, e a espiritualidade baseada no ideal de vida angélica tem a função de incentivar, de mostrar aos homens como fazer da terra um espelho do céu. Durante o período de cruzadas contra os inimigos do cristianismo, a escatologia que alimentava esse movimento era menos voltada para a espera do que para a ação. Nesse sentido, o auxílio do arcanjo São Miguel – que, no Apocalipse de João é apontado como o anjo responsável por submeter o Diabo/Dragão às profundezas do Abismo, exercendo relevante função no Juízo Final (Ap. 20, 1-3 e 12, 7-8) – será invocado com o intuito de exterminar por completo os infiéis não apenas dentro da Cristandade, como também fora dela, ao travar um novo combate para reconquistar o paraíso perdido. Inspirando-se nesses relatos bíblicos, as representações iconográficas de São Miguel darão relevo à sua armadura de guerreiro.
...................................................................................................
Fonte: http://migre.me/sR8Q4


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Moderna (Transcrição)

2. Iconografia do Arcanjo e fontes doutrinárias São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is 28, 17; Jó 31, 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio (Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó. Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição (MALE, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de satã seria negra (8). Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e essencialmente animal. GRABAR (1994) observou notável popularidade nessa representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001). No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano. Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Referese ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus, Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as iniciais. O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência, freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas. Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig. II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio, sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563).
 Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel, aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 21; Dn 12, 1; Ap 20, 1- 3, Ex 23, 20-21). Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus recebera a missão de conduzir aquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo, dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos. Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações" (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI. Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas, renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994, 363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig: X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação dos tempos, mas ao juízo individual. A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo (13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal, notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - =1642). A posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante o Barroco internacional
................................................................................................................
Fonte: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/artigo07.pdf